Mas eu não.
Lembro ali, por volta dos meus 10, 11 anos, que eu tinha medo de visitar uma amiga da minha avó, dona Daisy, candomblecista, médium, curandeira. Tinha medo que ela me olhasse e visse. Visse meu espírito sujo, meus constantes sonhos de vingança, e pior, que ela contasse para minha avó que eu era sim, uma pessoa ruim.
Seria o fim. Ninguém mais me amaria, todos me olharam com ar de desconfiança, esperando eu me perder no personagem da boazinha para me pegar no pulo e dizer “TÁ VENDO! ELA É MÁ MESMO!”, e consequentemente os castigos seriam mais severos, já que meus erros seriam de propósito, afinal essa menina é ruindade pura, olha só, tá emaranhado na alma dessa criatura.
Tive tanto medo de ser descoberta que ao longo dos anos passei a exagerar na performance da bondade, sem nunca dizer palavrões, sem revidar em discussões, dando a outra face como Jesus, esse sim um bom exemplo de bondade.
Nunca me deixava levar pela braveza ou irritação, porque isso não é o que se espera de uma alma pura, mas me permitia sim ficar triste, porque o bom e justo se entristece e pede clemência para que Deus aja.
Pra ser sincera no começo eu tentei ser boa, me esforçava para isso, mas dentro do meu coração eu sabia que era impossível. Não tem como ser boa sentindo raiva, ninguém realmente bom discorda do pai e da mãe, ninguém bom sente raiva do próprio corpo e de quem se é.
Quem é bom é sempre bom, rebate maldade com amor — mas eu sempre quis rebater com ódio, com violência, com todo aquele fogo dentro de mim. Aprendi que pessoas boas são pacientes e esperam em Deus. Então como eu, uma criança cronicamente ansiosa, vou ser boa?
Me esforcei tanto para ser boa, que cada grito de basta que eu engolia se metamorfoseava em ferida aberta no couro cabeludo, cada estresse contido vinha a tona em forma de queda de cabelo.
Pensava ser castigo, Deus sabia que eu estava mentindo, é claro, uma menina dessas não consegue enganar a Deus-Todo-Poderoso, porque ele sabe do coração de cada um.
Esse mesmo Deus sabia o quanto eu pedia para que tirasse essas impurezas de mim, que me fizesse santa, mas acho que ele nunca me ouviu.
Continuei com raiva, continuei má. Deus deve me achar bem audaciosa em pedir essas coisas, mesmo porque se eu sou má é porque Ele quis, afinal não cai uma folha de uma árvore sem que seja a Sua vontade.
Já que ele quis, aqui estou. Sem máscara, exponho minha ira, revoltas e ironias.
Matei Deus. Finalmente livre.
